Tenho a certeza que o amor é uma estupidez. Torna as pessoas meio estúpidas e muda-lhes a maneira de ser e se calhar torna-as mais felizes, está bem, mas isso não muda nada e é claro que não torna inteligentes os que já são estúpidos. Quando vou na rua e vejo alguém com um sorriso parvo estampado na cara, penso: este fulano deve estar completamente apanhado da pinha, mas às vezes, quando estou em maré de indulgência, acrescento para mim: ou completamente apaixonado. Concordo que as declarações de guerra ainda são piores que as declarações de amor, mas isso não impede que as de amor sejam uma estupidez. Além disso, as declarações de amor podem acabar em guerra declarada ou por declarar, como aconteceu com os pais do Sérgio. Quem tiver adivinhado que estou apaixonado e se considere muito esperto e inteligente, elementar caro Watson por isso, com certeza que é um convencido, e se pensa que sou estúpido, ainda por cima é imbecil, porque pode acontecer a qualquer um apaixonar-se e ninguém está a salvo. Eu, para não ir mais longe, apaixonei-me pela Sara sem querer, comecei a gostar dela sem querer. Ao voltar das férias de Verão inventei uma história em frente dos colegas de turma. O Gonçalo - que quer ser um chulo - e o Miguel - que quer ser dentista e encher-se à conta de pontes e chumbos - tinham troçado do André porque o André nunca tinha estado com uma miúda, de maneira que quando chegou a minha vez inventei uma história de praia com uma estrangeira. A história não era muito original, mas pelo menos a garina não era sueca, embora o seu país também começasse por um S: era do Suriname e, não sei se repararam ou não, mas um S parece-se com uma serpente e isso é uma coincidência engraçada. Esta cena causou enorme expectativa (o Suriname, claro, não a serpente). De acordo com o que contei, a garina tinha os olhos amendoados e a pele ligeiramente amarelada, açafrão, mas ao mesmo tempo muito queimada. Quando tocou a campainha avisando que a aula ia começar, fiquei um coche sozinho e foi então que senti uma vergonha enorme por não ter ajudado o André quando fizeram troça dele. Ao entrar na aula reparei numa rapariga nova que se tinha sentado na primeira fila e pensei que se tinha sentado ali por ser a única em que havia dois lugares livres. Tinha uma razão muito diferente, mas eu ainda não podia saber. Era a Sara, claro. Tinha o cabelo loiro. A mim, tanto me faz que uma rapariga seja loura ou morena e isto não quer dizer que goste de todas mas sim que não tenho nada contra as louras nem contra as morenas e passei meia hora da aula a tirar apontamentos e a outra meia hora à espera de conseguir ver a cara da nova.
- João - chamou-me a atenção o stôr de Geografia, que às vezes salivava demais e então parecia um regador e os da primeira fila canteiros de hortênsias. - João, tens alguma coisa?
O stôr de Geografia conhecia-me do ano anterior e gostava de mim, não sei porquê. Eu também o curtia e acho que também não sabia porquê, embora se calhar era por ele gostar de mim.
- Não - disse eu, e corei porque sou um dos três mais tímidos da turma.
Então a chavala nova voltou-se e vi finalmente a cara dela. Juro que me sorriu durante meio segundo e que ela também corou. Claro que nesta altura da minha vida o eu jurar qualquer coisa não singnifica necessariamente que seja verdade. Quando digo qualquer coisa, pode ser verdade ou mentira. Quando prometo, já é mais possível que seja verdade, e quando juro, é bastante provável que seja. Mas absolutamente certo, cem por certo certo e ponho as mãos no fogo e que me caia um raio em cima, isso nunca. Uma vez disse à Sara:
- Juro-te.
Mas ela já me conhecia e disse:
- Está bem, mas é verdade ou não?
Fiquei mais desarmado do que o Gandhi e compreendi que um gajo tem de conservar uma parcela de credibilidade, porque se não chega a uma altura em que precisa que acreditem nele e niguém acredita, como na história do Pedro e o lobo, e um gajo fica danado e na verdade sem razão, porque a culpa é sua. Disse portanto:
- A partir de agora, quando jurar qualquer coisa a ti, aos meus pais ou ao meu irmão mais novo, juro que será sempre verdade.
Pensei que aquilo tinha mesmo que cumprir e que me estava a meter numa enrascada, porque se calhar alguma vez ia precisar de mentir à Sara ou aos meus pais e já não podia. Ao meu irmão mais novo não, ao Zaca nunca mentiria a não ser para lhe dizer coisas boas e para o consolar, dizer-lhe por exemplo que o mundo é bom e que no fim os actos maus são castigados e os bons são recompesados e as pessoas más têm o que merecem como nos desenhos animados dos Power Rangers e do Dragon Ball. Mas apesar de pensar que me estava a meter numa boa enrascada, gramei dizer aquilo, primeiro porque em quinze segundos me tinha transformado num home mais digno, num homem de palavra, e segundo porque incluir a Sara no grupo dos meus próximos, um grupo em que nem sequer tinha incluído o Paulo ou o Sebas, quase equivalia a dizer-lhe que a amava. Ela percebeu qualquer coisa porque me lançou um sorriso de fera que mostra os dentes e saiu a correr. Bem, pensar que era assim que ela ia reagir se eu confessasse os meus sentimentos roubou-me as forças para os confessar durante três ou quatro meses, pelo menos, pois desse tipo de forças não tinha muito. Mas ainda tenho que falar de mais mil e uma coisas. Por exemplo, dos hamsters e das cobaias ou dessa ratazana que andámos a perseguir na rua lá de casa e que ela dizia que era um ratinho. Na realidade, os hamsters não têm nada a ver com esta história e, além disso, foram morrendo todos, um atrás do outro, embora como os vamos substituindo continuemos a ter um. A cobaia chamava-se Cocas e no dia seguinte a ter esticado o pernil o meu primo, que é um anão e só tem quatro anos, perguntou-nos bué excitado, quase atropelando as palavras:
- E vocês viram como ela subiu ao céu quando morreu?
Disse que sim e ele disse:
- Todos os mortos são reis.
Aquilo foi o mais bonito do dia e da semana e pareceu-me a mim que a morte da Cocas ficava assim mais justificada, e fiquei com a dúvida se aquela frase dos mortos e dos reis era do meu primo ou se a teria ouvido a alguém mais velho, mas não sei, porque às vezes diz coisas que gostaria de ter sido eu a dizer. Começo a falar da Sara e acabo a falar de uma cobaia gorda e meio assassina, que dava dentadas e não havia quem metesse a mão na gaiola e fazia umas cagadas enormes e a Sara é bué orgulhosa e também se ofenderia se soubesse que tem que partilhar este relato com esse animal tão sujo, mas na realidade a culpa não é minha nem de niguém, odeio os gajos que andam sempre à procura de uma razão ou de um culpado, como se às vezes as cenas não acontecessem porque sim, já sabia que me ia acomtecer uma cena do género porque ao falar da Sara fico bué nervoso, mas vocês tinham que a conhecer, embora está claro que não vou ser eu que vos apresente, porque há uma coisa que não disse à Sara para não me chamar ciumento e cobarde e tirano, e é que às vezes me dá vontade de a fechar a sete chaves e quem a quisesse ver teria que pedir-me autorização e eu só deixaria que a vissem os mais feios de todos, pedido prévio feito com foto, e atrapalho-me e quero dizer tudo ao mesmo tempo. Disse antes que o meu primo era anão, mas é mentira. Uma vez fui a casa dele e ele estava a brincar no chão e cumprimentei-o assim:
- Olá, anão.
E então ele olhou para cima, com toda a sua inocência e sabedoria e disse:
- Não sou um anão, só tenho é quatro anos.
Estive a rir meia hora seguida. Um dia conto-lhes a dos provérbios. Com o meu primo pode-se aprendes muita coisa apesar de só ter quatro anos e estar impaciente porque lhe faltam dois meses para fazer os cinco.
E Dizer-te uma estupidez qualquer, por exemplo, amo-te, Martín Casariego Córdoba
[e hoje apeteceu-me, e olhei para a estante e apeteceu-me, outra vez]