pai,
coisas do dia que explicam a decisão que tomei há pouco mais de uma hora: a menina de manhã, o bolo de aniversário e the winter of our discontent.
tinha tempo, sai na praça de espanha. assim que vi as luzes do pavilhão central, quis correr para lá. quis correr até ao pavilhão de medicina, subir ao 2º andar e implorar que me deixassem entrar no quarto onde te vi vivo pela última vez. mas fui muito devagarinho, a observar cada janela, cada porta do IPO. devo ter demorado uma eternidade a percorrer a rua. até parei em certas alturas só para ver melhor. acho que pintaram as paredes do muro, mas como era noite, não tive a certeza. um dia volto lá. quero entrar lá novamente e percorrer determinados corredores, visitar determinados quartos. ajudar até, se for preciso.
sabes, tenho-me lembrado muito do senhor bengaló. nunca mais soubemos dele. a mim custa-me, porque quando saíste do hospital, eu tinha dito que ainda voltava para o visitar e depois acabei por não ir.
a mãe falou com a mulher do senhor armando em dezembro. acho que ela ligou para nos desejar bom natal. ainda não sabia de ti. e disse que não ia contar ao marido. lembro-me também do senhor joão, com quem acabaste por não comer as sardinhas. não sabemos o que é feito dele, também. e tenho-me lembrado do senhor vitor.
lembro-me quando te ia visitar. estavas no recobro. eu falava contigo e tu deslocavas o teu corpo para vê-lo na cama dele. eu ficava chateada, porque estava ali contigo, a perguntar por ti e a contar-te coisas e tu só querias saber do homem que estava a morrer.
lembro-me de muita coisa.
há pouco tempo, lembrei-me de quando estávamos os três a sair e eu tive de te dizer que estavas doente outra vez. lembro-me perfeitamente do sol que fazia. do sufoco que senti por ter de ser eu a pronunciar aquelas palavras. as palavras que acabariam por ser a tua sentença de morte.
não fui para o emprego novo. sei que fiz o que gostarias que tivesse feito, mas não foi por isso que o fiz. foi por achar que era o melhor a fazer. é engraçado, perguntei a opinião de muita gente e custou-me muito não ter a tua, mas só depois de decidir me apercebi que, muito possivelmente, nunca a teria tido. tu, em certas coisas, nunca nos dizias o que fazer. preferias sempre que fossemos nós a escolher determinados caminhos.
o gaio morreu. mas eu e a mãe vamos limpar e pintar a gaiola e arranjar mais passarinhos. acho um bom sinal ela querer continuar a ter pássaros.
sabes, às vezes quando vou para casa, há quem siga o teu carro com o olhar.
e eu percebo.
eu também queria que fosses tu a conduzi-lo.
até qualquer dia.
até sempre, pai.
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