não se fala nesta casa. porque estamos sempre bem. não se partilha nesta casa. se há problemas, esses não cabem na mesa, durante as refeições. não cabem nas respostas sobre os dias que tivemos, porque ninguém quer saber do dia que tivemos. e se choramos, escondemos a cara entre as mãos, ou entre 4 paredes, sozinhos. sempre sozinhos, porque estamos sempre bem. mas quando falamos, ah, quando falamos, é como se nunca tivéssemos derramado aquelas lágrimas, ou como se nunca não tivéssemos respondido à pergunta que uma filha pode colocar a uma mãe. mas isso, meia hora depois, já não interessa. porque não há qualquer problema e estamos sempre bem. os níveis de saturação começam a esgotar-nos a todos. todos nos queixamos uns dos outros; a mãe queixa-se do pai, o pai queixa-se da mãe, e certamente um deles (ou os dois) se queixa de mim. mas não conversamos. até porque mesmo quando falamos, ignoramos. não ouvimos. não assimilamos. não queremos saber. a mãe vai continuar a implicar com tudo o que o pai faz; o pai vai continuar a implicar com a mãe não o deixar sossegado. eu? do lado do pai, sempre que posso. sempre que posso digo-lhe que não faz mal ele querer ficar deitado e nunca o obrigo a comer. eu, quando era pequena, também nunca queria comer e o pai dizia à mãe para não me obrigar a comer. e, assim, somos um para o outro. quem me conhece bem, sabe que não morro de amores pela minha mãe e dizem que é uma coisa horrível de se dizer e tudo o mais. mas, não foram criadas pela minha mãe, não vivem com ela. por isso, não fazem ideia do que estão a falar. é como quando as pessoas me perguntam pelo meu pai. eu entendo, genuinamente, a preocupação das pessoas, o interesse, o quer que seja. eu faço o mesmo, quando pais/amigos/familiares de amigos passam por algo de mal. também pergunto, também me interesso. mas ultimamente, o ponto de saturação tem aumentado. e quando me perguntam pelo meu pai, a primeira que me ocorre dizer é "bem, está a morrer... mas isso estamos todos, mas ele está a morrer mais rapidamente e com mais sofrimento." mas não digo. não digo, porque a principal saturação não é com essas pessoas que perguntam. a minha maior saturação é com a minha mãe, que tudo sabe e tudo afirma e tudo controla. não sei como estas coisas se processam, porque só posso falar do que conheço, mas sempre pensei que seria a pessoa doente a massacrar mais os que estão em redor. mas nós não falamos de coisas importantes, porque não vale a pena. e como não falamos com quem mais sabe da situação, quando falamos com quem está por fora, com quem se interessa por nós e se preocupa com as nossas horas de sono, a sensação que me dá é que eu estou completamente sozinha. a ideia de que os filhos são protegidos pelas mães, que as mães olham pelos filhos e que esses vêm sempre em primeiro lugar não passa de teoria. na prática, os filhos olham bastante pelos pais e, por isso, eu não falo com os meus pais sobre as coisas importantes. eles até poderiam saber compreender-me melhor que ninguém, mas nós não falamos. nós encolhemos os ombros ou abanamos a mão em "assim-assim". é como comunicamos. não falo com a irmã, porque há coisas e coisas. umas coisas são histórias de uma adolescência perdida que não vivemos em conjunto, mas que fomos conjugando com o passar do tempo, outras são, por exemplo, a vida do pai que nos criou. disso não falamos, falamos de decisões médicas, de consultas e exames. mas nunca do que podemos sentir. nunca. por isso, resta-me quem está por fora, que não sabe, não tem como saber, o que isto é. e eu posso até partilhar, que não tenho problemas com isso. contei a quem quis contar e chorei com quem quis chorar. mas aquilo que se calhar muita gente não se apercebe é que eu sinto-me sozinha a cada minuto que passa, porque não tenho ninguém "comigo". mas não falamos cá em casa. onde possivelmente nos fossemos entender melhor. não falamos uns com os outros. falamos da chuva que vai cair ou do vento que vai fazer, falamos de quem veio e quem vem visitar. falamos de dores, de quantidades de comida. coisas mais quantificáveis. do que sentimos? nunca. até porque aqui por casa, estamos sempre bem.