desde muito cedo que senti que eu vivia mais a morte do que as outras pessoas. quando a maioria dos meus amigos nunca tinha sequer conhecido alguém que tivesse morrido, já eu tinha ido a N funerais e velórios. nunca me esconderam mortes, nunca me deixaram em casa de alguém para eu não ir a funerais. aos meus 8 ou 9 anos, eu já sabia bem o que era morrer, o que eram velórios, o que eram funerais, o que era a noção de não voltar a ver alguém. aos meus 8 ou 9 anos, eu já tinha percebido que não são só os velhos e doentes que morrem, o que me fez muita confusão, inicialmente.
pode-se dizer que eu fui praticamente criada em 4 casas. a minha, obviamente. a dos meus avós, onde até certa altura, era onde passava a maior parte dos meus dias. a casa dos meus tios, mesmo ao lado da minha. e a casa dele, onde passava tardes, dias, a brincar. analisando bem as coisas, já perdi 3 partes da minha infância. primeiro, quando o meu tio morreu. no ano passado, morreu o meu avô. ontem, morreu o avô dele. e eu hoje de manhã, de cabeça feita e corpo a tremer, saí pelo meu portão e percorri a dúzia de passos que separa as nossas casas, para atravessar o portão de sempre e pisar o chão de sempre. aquela minha quase família, que tantas refeições me serviram em suas casas, estava ali, no quintal onde tantas vezes brinquei com o neto mais novo. o neto da minha idade. o meu melhor amigo de há tantos anos. não há maneira de explicar o que aquele quintal representa para mim. eu que nunca entrei pela porta da frente. ia sempre pelas traseiras, pelos caminhos conhecidos. pelos caminhos dos amigos. lembrei-me de mil e uma coisas. não só das refeições na cozinha da rua. mas da sala, onde víamos desenhos animados quando não podíamos estar na casa do primeiro andar. e depois o relógio tocou as 9 horas. e eu que me tinha esquecido do relógio. mas não da casa. não dos cantos. dos cantos onde via o avô dele a regar, a cuidar da horta, a cuidar do quintal. o avô político dele, sempre metido no bem estar da nossa pequena freguesia. morreu no trabalho, em assembleia. e eu a pensar que ainda ontem me ia levar à escola. e buscar, também. uma pessoa habitua-se às pessoas. a estar à janela do quarto e vê-los passar, dizemos bons-dias e boas-tardes e nem nos passa pela cabeça que essas pessoas sejam comuns mortais. não passa pela cabeça que podemos um dia vê-los e no dia seguinte não mais os ver.
antes de sair de casa, não perguntei se era preciso ir lá ter. não perguntei se podia ir lá ter. nunca alguma vez perguntei (perguntaria) isso. hoje, não ia lá apenas como amiga, ver se havia disponibilidade para um joguinho de monopólio. hoje ia lá, passar a mão na cabeça da avó e conversar com a mãe. o estado de sonho, em que se encontram conheço eu bem. a vida parece imaterial e leve, de momento. ainda nem há noção. ainda se espera que a qualquer momento, o vizinho atravesse o quintal que me fez hoje atravessar e espere o seu almoço servido na mesa de sempre.
de certa maneira, espera-se sempre.
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