Tuesday, December 29, 2009

gust of... *

acho que é chegada a altura do ano em que me viro um bocadinho para dentro. o final de um ano tem sempre um sabor agri-doce para mim. mas este ano tem um sabor muito mais doce. gosto imenso que este ano esteja a acabar. este ano que deixa das maiores cicatrizes que tenho, que marca grandes auges de tristeza e tão poucas notas de alegria. este ano vai, f i n a l m e n t e, acabar. ano marcado pelo nascimento da minha sobrinha. pela nossa primeira road trip. e pronto, ficam por aqui os marcos felizes. não quero com isto deixar passar uma vidinha tão miserável e coitadinha-de-mim. quero apenas que fique registado que tirando estes dois eventos, as coisas que mais marcaram este ano foram as algumas idas ao médico devido a estados de espírito não muito contentinhos (e o obrigada já repetido pela companhia nunca é demais). foi todo o caso do meu avô que se viu obrigado a aceitar que lhe cortassem a perna que há tantos anos (mais do que aqueles que eu tenho) o atormentava e morreu no dia seguinte. a completar com o facto de poucos dias antes termos recebido a carta a anunciar o carcinoma do meu pai. good times. mas vamos por partes. não vou aqui falar das idas ao médico que decorreram mais ou menos durante o primeiro semestre do ano, porque não vale a pena. porque já não me pesa nos ombros e não me traz angústia ao peito. vou antes falar do meu avô. joão. que me criou com a minha avó. ensinou-me a andar de bicicleta também. lembro-me bem. lembro-me também que nos dias de chuva ia-me buscar à escola na sua motorizada, com uma gabardina amarela. era genial ver aparecer uma mancha amarela no meio de um dia cinzento. grande avô. era caçador o avô joão. tenho memórias de acordar às 5 horas da manhã, quando os seus companheiros o iam buscar a casa. lá iam todos. como era caçador, o avô joão tinha sempre muitos cães. o meu preferido era o casa nova. éramos os dois crianças, ele mais novo do que eu, mas brincávamos muito. o avô teve, em tempos, uma cadela muito má. chamava-se toupeira. uma vez, o avô joão, fechou-nos na sala com a toupeira. nós éramos: eu, o avô joão, a avó, a irmã e penso que a mãe, mas sem certezas. não nos podíamos mexer, porque ao mínimo movimento, a cadela rosnava-nos e ladrava e o avô joão ria muito alto. sempre riu muito alto. dava belas gargalhadas. ria muito e a irmã estava furiosa. leve a cadela daqui para fora! deixe-nos lá sair! dizia ela, mas mal ela abria a boca e a toupeira soltava mais um rosnar mauzão. e o avô joão tornava a rir. o avô joão era muito amigo. gostava muito dos netos. e gostava muito dos respectivos dos netos. para ele aquilo que os netos escolhiam só podia ser bom. e eu sabia. ou não sabia, mas desconfiei. ou algo me disse que. não sei o que foi, mas tive de dizer "quero que conheças o meu avô antes que ele morra". e foi mesmo a tempo. mas não foi tempo suficiente. a verdade é que eu fui das últimas pessoas a ver o meu avô vivo. a ver o avô joão sem a sua tão estimada e tão dolorosa perna. não o reconheci. confesso. o avô joão não tinha placa e a cara estava diferente e hesitei, mas ele abriu os olhos e os olhos verdes do avô joão não enganam ninguém. marina, disse ele. ou não disse. murmurou. marina. o avô joão estava sem a sua perna, abriu os olhos, viu-me e disse o meu nome. eu beijei-o na testa porque é assim que devia ser. ele tinha muita sede, mas não podia beber água. lembro-me que tinha dores no corpo de estar na mesma posição e a mim fez-me impressão vê-lo mexer-se sem a sua perna, com a pouca destreza que lhe sobrava. lamentava-se muito o avô joão. e quando saí, decidimos todos fazer planos para a nova vida do avô joão. íamos construir uma casa-de-banho junto ao quarto dos avós. toda preparada. assim, a vida do avô era mais fácil. mas não, já não tem idade para aprender a viver à custa da pouca força dos braços. mas fizemos todos os planos. e no dia seguinte, antes do almoço, a mãe telefona para o hospital. queria saber como estava o avô. não disseram nada em concreto, mas venha até ao hospital que o doutor quer falar com vocês. por vocês estava implícito a mãe e o tio. e a mãe pergunta-me assim, ipsis verbis: "será que o avô morreu?" e eu digo que não, que não tem jeito nenhum pedirem para ir ao hospital para dizer isso. se fosse isso ligavam só e informavam. tínhamos visitas nesse domingo. primos de évora. e fui com o pai para a casa da tia, que mora aqui ao lado e almoçámos todos. todos ainda com a sombra da doença do pai recém-descoberta e o telefonema misterioso que tinha levado a mãe e o tio ao hospital. levei o telemóvel comigo, para o caso da mãe ligar. e a mãe ligou. e disse "o avô joão morreu". e foi assim que foi. e como posso eu chegar a uma mesa de almoço de família reunida e informar que. e o pai. agora tínhamos de ter muito cuidado com o pai. mas eu não sou boa com os panos quentes. respirei fundo e da porta da sala de jantar da tia disse "era a minha mãe. o tio joão lá morreu." e saí - sempre com o pai de baixo de olho. tinha de vir a casa trocar de roupa e ir para casa da avó, que estava sozinha. cheguei a casa e liguei à irmã. a irmã já sabia, estava a chorar ela. eu não. disse a ele. disse também a ela, e que passasse a palavra. vesti preto. peguei no carro e pus-me a caminho. e quando estava no caminho. gritei. gritei bem alto e chorei. e estacionei. e a avó estava aos gritos, já com as vizinhas pela casa a acusar os médicos, que não lhe deviam ter tirado a perna. que isto e aquilo. ajudei a avó a escolher a roupa do avô. tarefa que  nunca me tinha cabido a mim antes. escolhi a gravata. e o acaso fez com o avô levasse com ele a roupa que tinha levado ao casamento da irmã. as pessoas foram chegando e eu cada vez mais pequena ali. e o primo, o primo da infância olhou pelo quintal onde ambos tínhamos sido criados, quase em conjunto e disse que antes o quintal parecia-lhe muito maior. agora era tão pequeno. mas fomos nós que crescemos. e agora já não há fio atado ao stake que nos una. o avô foi logo nessa tarde para a igreja. não queríamos adiar nada. o avô joão estava quente ainda e isso fez-me muita confusão. os mortos são frios. será que está morto? pensei eu. é ridículo, eu sei, mas o avô joão estava quente. e mole. não fazia sentido estar morto. mas estava. tive três boas companhias nessa tarde e noite. é aí que sabemos os amigos que temos. são aqueles que correm ao nosso encontro. rain or shine. e no dia seguinte, de manhã, o avõ joão foi levado para a última cama onde se deitaria. fui  despedir-me dele e as últimas palavras que lhe disse ficam comigo e com ele, ficam entre nós. despedi-me. e ninguém o fez, excepto eu: agarrei num punhado de terra e joguei-o para cima da cama do avô. e depois, sim, chorei e agarrei a mão dela que tinha vindo para estar comigo. agarrei a mão dela e chorei pelo avô joão. nessa tarde, seguimos para lisboa. enterrados os mortos, havia que cuidar dos vivos. e era o meu pai que estava agora em primeiro lugar. o que se podia fazer com a lesão no esófago do meu pai - viemos a descobrir que são poucos os médicos que usam a palavra cancro; devem ter medo de a dizer: c a n c r o. demos algumas voltas e fomos parar ao sítio certo, onde fomos sempre muito bem acolhidos. o pai ia fazer quimioterapia e radioterapia. ao mesmo tempo. ia fazer os tratamentos durante 4 ou 5 semanas, já não me recordo e na primeira e última semana ia ficar internado. a receber veneno durante 24 horas por dia. e o pai lá foi e portou-se muito bem. era a alegria dos quartos, sempre com a bela piadola ao virar de cada esquina. e eu ia religiosamente, todas as tardes após o trabalho ver o pai. e a semana terminou. o pai veio para casa, agora só tinha de fazer radioterapia. o pai chegou a casa no sábado à tarde, com muitos medicamentos, os quais me passaram para as mãos. fiz os horários dos medicamentos do pai. sabia para que servia cada comprimidinho que o pai tomava. mas no domingo, o pai teve dores na perna esquerda. era normal. já sabíamos que a quimioterapia trazia dores. mas o pai e a mãe não dormiram de domingo para segunda. o pai não conseguia pregar olho com as dores que tinha. mostrou-me o pé. branco. frio. isso não é normal, disse eu. já que vais ao tratamento, podias ver disso, mas o pai manteve-se forte e teimoso como sempre e foi ao seu tratamento e voltou para casa para logo imediatamente depois, a mãe me ligar a pedir para eu ir ao hospital pedir transporte para o pai. o pai já não aguenta com dores. o hospital não podia ir buscar o pai a casa, então a irmão levou-o e ficámos lá. nós os 4. de certa maneira, é muito triste ter noção que este foi o ano em que ficámos os 4 sozinhos mais vezes. mas ficámos sempre. e o pai já tinha o pé roxo. com muitas dores. o médico viu-o. o sangue já não circula ali. os medicamentos não chegam lá e não há nada que tire as dores do pai. o pai vai para outro hospital. o hospital onde há muitos anos o avô joão já tinha sido tratado e onde - segundo as palavras da família - nunca fizeram nada pela perna dele. mas o pai ia para lá. e a mãe chorou muito. e será que o operam? e operaram. o médico olhou para o pé do pai e disse que mais uns minutos e tinha de ir o pé fora. foi preparado e levado para a sala de operações em estado de urgência. o pai nunca tinha sido operado e estava tudo a acontecer naquele momento. e eu nem sabia para onde me virar. então virei-me para aquilo que sei fazer melhor: deveres. liguei a informar os irmãos do pai do que se passava. avisei quem tinha de avisar e o sentido de responsabilidade ajudou. depois chegou ele, que ficou comigo. e o pai foi operado duas vezes. a primeira não ficou como os médicos queriam, então fizeram novamente e depois pudemos ir ver o pai, que estava relativamente consciente. entrámos as 3 e falámos com o pai e tocámos no pé, agora quente. mas não ficou por ali. o pai agora tinha de estar um bom tempo a repousar a perna e o pé. voltou para o hospital de origem e aí ficou. ai o pai fez companheiros de quarto, ai conheci o senhor bengaló e tantos outros com quem conversávamos todos os dias. depois o pai ficou melhor e começou a dar passinhos com a ajuda de uma muleta e depois o pai voltou para casa. e finalmente, o pai pôs-se a conduzir e a retomar a sua vida normal. hoje mal coxeia e mal se nota que teve algum problema na perna. mas agora, o pai já não podia fazer mais quimioterapia, porque podia agravar a perna. agora o pai só tinha a radioterapia e depois disso, disse-nos o muito famoso médico que "se não der para ser operado, não há nada a fazer". grande médico. delicado. a espera pela decisão de operar ou não operar foi, portanto, muito longa. mas quando aconteceu e outro médico - um que víamos pela primeira vez - nos disse "vamos operar", eu quis chorar e o pai também. a irmã ria muito. e o pai tinha os olhos marejados e eu escondi a cara para respirar e não chorar. o pai ia ser operado. vão tirar o esófago e o pai fica livre. nós ficamos livre. cancer free. todos nós. e foi marcado para dia 22 e depois para dia 29 e agora não sabemos. estamos à espera. novamente, à  e s p e r a. e é, resumidamente, por isto, que estou ansiosa para que este ano chegue ao fim.



* the album leaf


4 comments:

sahara said...

olha lá e os concertos, hm? foste a alguns e um ou outro até foram bem aproveitados :P

de resto, mostraste uma coragem e força este ano que deixa pouco espaço para palavras. cresceste, menina, não que precisasses antes que tal acontecesse mas, mais uma vez, demonstraste estares à altura dos "desafios" and that you'll keep on being here so life better start getting used to it and stop acting less bitchy. já aprendia umas coisinhas contigo, já :P

abracinho mais-ou-menos amigo* :)

CLÁUDIA said...

Queria conseguir escrever muito para poder explicar o que senti enquanto te fui lendo, mas fiquei com pouquinhas palavras, sabes?...

Desejo do fundo do coração que o novo ano te mantenha com a força e com a coragem que demonstraste até aqui e te presenteie com tudo aquilo que mereces.
Um ano mágico para ti e para os teus Marina.
Beijinhos. ***

Petit Leaves said...

Um abraço cheio de força e muita esperança e muitos beijinhos na ponta do nariz... (e vais ver que irá correr tudo bem!)

Tati said...

acho q no fundo estava a espera do dia em q ias deitar tudo isso cá para fora. vais enchendo e retendo tudo até q um dia sai ca para fora. acho eu, correct me if I'm wrong.

Também te desejo um 2010 em muito melhor q 2009. Mas já te tinha dito isto. Só quero te deixar um abraço mimoso. Bora p'rá frente com hope, faith and strength. Desejo-te não um bom mas um óptimo ano!

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