Monday, February 14, 2011

carta ao pai #5

pai,

3 assuntos:
a carta;
a oficina;
o rex.

sexta-feira quando cheguei a casa, estava lá, em cima da máquina de lavar uma carta. dizia assim JOSÉ ANTÓNIO CALADO e por baixo tinha a nossa morada. era uma carta de santa marta, a remarcar a tua consulta com o doutor sérgio. nós gostávamos do doutor sérgio, lembras-te? foi quem esteve connosco quando se deu a tua primeira operação. à perna esquerda, lembras-te? lembras-te, pois. disseste que foram as piores dores que alguma vez tinhas sentido. não me esqueci do pacote de leite. oh, que fui buscar às máquinas e depois ouvimos dos médicos que não te devíamos ter dado nada. sim. mas pronto, recebemos essa carta. fiquei a olhar para ela uns tempos, a pensar se não seria suposto os hospitais comunicarem entre si. mas depois, lembrei-me que no dia do teu funeral, a mana recebeu uma chama do próprio IPO para saberem como te estavas a dar com a medicação. por isso.

hoje, fui à oficina, ao senhor onde íamos deixar o rover. não faço ideia do que andaste a fazer com o carro, por isso achei melhor levá-lo lá antes de ir à inspecção (sim, já a marquei para sábado e não, a senhora do seguro ainda não me ligou). comecei a falar com o senhor, a explicar que queria lá deixar o carro amanhã, mas que como ia para lisboa, precisava de saber a que horas fechavam e tal. e olhou para mim, até que eu disse. ou melhor, não disse, enchi a boca com estas palavras "eu sou a filha do zé calado." uff, que insuflação de orgulho que se deu no meu peito. e ele disse "sim, sim, eu lembro-me. então, e como é que está o seu pai?" e aí parou tudo. "o meu pai já faleceu" e lá veio a mãozinha repousar no meu braço "ah, os meus sentimentos" e ele continuou porque já tínhamos falado de como o pai dele também tinha morrido de cancro - tu lembras-te disso, foi no verão passado, quando lá estivemos. mas eu vai de seguir a falar do carro; filtros e óleo e faróis e travões e tudo e tudo. não vou é alinhar a direcção, não sinto que o carro precise.
mas é estranho. fez ontem 3 meses que tu morreste e ainda dou por mim a dar essa "notícia" às pessoas. não é suposto, pai. não é suposto eu ter de estar sempre a dizer que morreste. assim, tenho de ter sempre isso presente, percebes?
não quero pensar que morreste, pai.

mas o último assunto que me traz aqui hoje é o rex. liguei à mãe há bocado, porque ela de manhã tinha ido ao cemitério, mandou-te fazer um coração de flores pelo dia dos namorados. oh, o que tu ririas com isso. tu que não ligavas a nada dessas coisas. acho que se eu alguma vez te desse uma prenda no dia do pai ficarias ofendido. não gostavas nada do conceito de haver um dia para uma coisa. pai eras tu todos os dias. ainda és. eu ainda digo que sou tua filha, não digo que fui. sou. SOU.
mas pronto, estava a falar com a mãe e ela começou a contar-me que quando chegou a casa, foi dar com o cão deitado, assim meio a babar-se e com a cabeça a abanar, como se fossem convulsões. tem as pernas traseiras paradas - pelo menos foi isso que percebi, que não as mexia. ligou para os brejos e para a quinta do conde, mas não tinham veterinários para irem a casa. por isso, ligou ao tio joão que lá conseguiu alguém do barreiro. e não tarda muito vão lá vê-lo. mas a mãe acha que ele está mesmo a morrer a já não acredita que ele se levante dali.
sim, está velhote. mas também deve ter muitas saudades tuas. às vezes noto que este cão foi diminuindo de vida à medida que tu próprio ias ficando doente. eras tu quem brincava com ele, andavam os dois aos pulos feitos doidos no quintal. mas depois com a doença, foste ficando mais fraco e mais preso a casa. e ele também se foi tornando mais pachorrento. pode ser que te queira fazer companhia. aí. onde quer que tu estejas, pai. 

penso muito em ti, mas tu sabes isso. ontem, lá me pus a ouvir-te novamente.
sabes que até voltei atrás para ouvir a tua gargalhada mais de uma vez?

eras tão palhaço. oh, vê lá, nunca ralhaste comigo por te chamar estas coisas quando eras vivo, não vai ser agora que não as vou dizer.

houve muita coisa tua que perdurou.
mas é engraçado como os animais que nos deixaste começam a ir.
primeiro, o gaio e agora o rex.
é como se de certa forma quisesses que começássemos de novo. uma vida liberta das amarras do cancro.

ontem, na missa, a mãe disse que gostava de ir a fátima a pé. aproveitei a minha onda do "queremos fazer, fazemos" e fui logo falar com a marta à sacristia (?), para saber se a mãe ainda podia ir. pode. mas depois começou com coisas de ser muito cedo e não sei quê. mas eu e a mana estamos a fazer uma forcinha para ela ir.

não te vou falar das coisas que ando a fazer, que tu já sabes o que ando a fazer e o que ando a pensar. e nunca comentas nada, és incrível.

és meu pai.


1 comments:

Poetic Girl said...

Adoro as cartas que escreves ao teu pai, faz-me lembrar tanto as conversas que tenho com o meu... beijocas